quarta-feira, 24 de novembro de 2010

A última crônica – Fernando Sabino



A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de correr com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódio. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num incidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: ” Assim eu quereria o meu último poema”. Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar para fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.
Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, torna-se mais evidente pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional de família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhado imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os dois lados, a assegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção de bolo com a mão, larga-a no pratinho – um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma fatia triangular.
A negrinha contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de um caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.
São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente, põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a seus pais que se juntam, discretos: “Parabéns pra você…” Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura – ajeita-lha a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que caiu no colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer, intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido – vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.
Assim eu quereria a minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.
FERNANDO SABINO

16 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Achei muito interessante pois mostra como o autor conseguiu criar uma cronica quando estava sem criatividade.

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  3. A cronica foi muito interessante, pois o autor inicia contando o seu dia a dia do seu trabalho de criar cronicas mas estava sem ideias de criar outro, então foi para botiquim para tomar café e viu pessoas humildes na mesa do canto, isso deu a ele uma inspiração para criar uma cronica.

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  4. Achei muito legal, pois fala da humildade das pessoas pobres, e que não importa o lugar e nem como seja a comemoração, o que importa é levar felicidade para a família.

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  5. A cronica foi interessante,porem ,ñ concordo com o luis acho q a cronica ñ fala sobre o dia a dia do trabalho de criar uma cronica.

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  6. Acho que é um texto importante para abrir os olhos das pessoas de que não importa a maneira nem a situação em que a pessoa esteja , as pessoas mais humildes ou menos favorecidas se importam mais com sentimentos do que se vão poder fazer algo grandioso, ou melhor ou com se vai ser com boas coisas , se importam mesmo com a felicidade da sua familia .

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  7. eu achei muito legal legal, por que fala das pessoas humildes, que não importa de que jeito seja a comemoração o que importa e comemorar e levar a felicidade as pessoas.

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  8. Fala sobre o aniversario de uma filha de pais com renda financeira baixa, mas apesar de tudo eles comemoram o aniversario humildemente e felizes.

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  9. Essa Cronica é bem legal...!!*-*

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  10. Helena Amaral Guedes1 de outubro de 2011 às 21:05

    muito boa a crônica! nos faz ver um pouco mai8s da realidade das pessoas, e perceber que as coisas mais simples, muitas vezes são as mais importantes.

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  11. Muito interessante essa crônica!
    A crônica nos mostra mais a realidade de pessoas humildes.E que as vezes não precisamos de muito para ser feliz ,pois não é só bens materiais que nos trazem felicidade.

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  12. Gostei muito da crônica ! Ela nos ensina que não é só de coisas grandes que vive o mundo , que um simples fato consegue nos roubar um sorriso .

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  13. Gostei de+ da crônica pois o criador está sem idéia pra criar uma crônica, porém consegue criar a crônica

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  14. No mundo onde existe, na maioria das raças, a desigualdade, o desprezo, a injustiça, a indiferença, a cronica mostra que em um simples gesto é possivel apagar tudo isso e encher o coração de um ser humano de tudo que há de bom sem deixar lugar para mais nada, a não ser todas as qualidades que deveria existir.!!!

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